Sunday, June 17, 2007

Este Senhor inigualável era meu Pastor




Há quinze anos, chegou de mansinho, assustado, sem saber direito onde era seu espaço. Aos poucos, foi tomando conta de tudo e atravessando a ponte invisível que liga dois indivíduos. Sem pedir licença, tendo certeza de que do outro lado haveria um sofá para babar, água fresca e comida, foi chegando como quem não quer nada e se instalou permanentemente. Trouxe consigo bolinhas de tênis estouradas, um pedaço de edredom velho e um afeto incondicional, nunca antes imaginado.

Filho de um antigo amigo, cresceu sendo comparado com ele e, com seu jeito encantadoramente desastrado, superou qualquer expectativa. Desobediente, indomável, bravo, desconfiado, anti-social e voluntarioso. Rosnava quando alguém se aproximava para limpar suas orelhas. Abanava o rabo satisfeito quando estava com as orelhas limpas. Comia desesperadamente quando havia gente conhecida por perto. Quando não havia ração, tomava água com a avidez de um retirante. Durante dez anos, sofreu de gastrite. Melhorou quando decidiu parar de comer no McDonald’s sem nem ter visto a tabela nutricional ou um documentário sobre isso. Era genial.

Latia para o vento. Latia para o escuro. Latia. Uivava. Cheirava. Fungava. Irritava constantemente os vizinhos. Destruía todas as bolas de futebol que caiam em seus domínios. Preferia futebol com tijolos. Treinava sozinho toda a madrugada sob minha janela. Era um artista da cerâmica: todas manhã dava um toque abstrato ao piso do quintal. Na falta de tijolos, caroços de manga.

No inverno, soltava pêlos. No verão, soltava mais pêlos. Tinha uma orelha deformada. Tinha o focinho amassado. Era simplesmente perfeito. Quando jogava um graveto para que fosse buscar, voltava com um enorme tronco na boca e misto de desafio e contentamento no olhar. Odiava apenas gatos que mereciam ser odiados. Odiava todos os pombos. Era justo. Na rua, só latia para cachorros pequenos. Não tinha nada de irracional. Passeava sozinho. Adotou um cachorro de rua. Adorava filhotes.

Passei noites em claro preocupada com sua saúde. Passei noites em claro detestando sua vitalidade sob minha janela. Envelheceu. Sofreu. Seguiu impotente e resoluto o caminho da degeneração. Sempre incompreensivelmente feliz. Deixou pra trás um vínculo marcante, indelével, permanente e o lamento de uma escolha em que para salvar sua vida tive de desistir dela. Sem dúvida nenhuma, você vai fazer falta, garoto.

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